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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Senta-te ao meu lado





Hoje eu não quero conversas vestidas de uniforme. Diálogos impecavelmente arrumados que não deixam o coração à mostra.
As palavras podem sair de casa sem maquiagem. Podem surgir com os cabelos desalinhados, livres de roupas que as apertem, como se tivessem acabado de acordar. Dispensa-se tons acadêmicos, defesas de tese, regras para impressionar o interlocutor. O único requinte deve ser o sentimento. É desnecessário tentar entender qualquer coisa. Tentar solucionar qualquer problema. Buscar salvamento para o quer que seja.

Hoje eu não quero falar sobre o quanto o mundo está doente. Sobre como está difícil nós vivermos. Sobre os milhares de coisas que causam o cancro. Sobre as previsões de catástrofes que vão dizimar a humanidade. Sobre o quanto o ser humano pode ser também perverso, corrupto, tirano e outras feiuras. Sobre os detalhes das ações violentas noticiadas nos jornais. Não quero o blablablá encharcado de negatividade que grande parte das vezes não faz outra coisa além de nos encher de mais medo. Não quero falar sobre a hipocrisia que prevalece, sob vários disfarces, em tantos lugares. Hoje, não. Hoje, não dá. Não me interessam o disse-que-disse, os julgamentos, a investigação psicológica da vida alheia, os “achismos” sobre as motivações que fazem as pessoas agirem assim ou assado, o dedo na ferida.

Hoje eu não quero aquelas conversas contraídas pelo receio de não se ter assunto. A aflição de não se saber o que fazer se ele, de repente, acabar. O esforço de se falar qualquer coisa para que a nossa quietude não seja interpretada como indiferença. Hoje eu não quero aquelas conversas que muitas vezes acontecem somente para preenchermos o tempo. Para tentarmos calar a boca do silêncio. Para fugirmos da ameaça de entrar em contato com um monte de coisas que o nosso coração tem pra dizer. Além do necessário, hoje não quero falar só por falar nem ouvir só por ouvir. Que a fala e a escuta possam ser um encontro. Um passeio que se faz juntos. Um tempo em que uma vida se mostra para a outra, com total relaxamento, sem se preocupar se aquilo que é mostrado agrada ou não. Se aumenta ou diminui os índices de audiência.

Hoje, se quiseres, se puderes, se souberes, fala-me de ti. Da essência vestida com essa roupa de gente com a qual tu te apresentas. Fala-me dos teus amores, tanto faz se estão perto do seu corpo ou somente do teu coração. Fala-me sobre as coisas que costumas fazer para sintonizar a frequência do teu riso mais gostoso. Fala-me sobre os sonhos que mantêm o frescor, por mais antigos que sejam. Fala-me a partir daquilo em tu que não desaprendes-te, o caminho das delícias. Do pedaço de doçura que não foi maculado. Da porção amorosa que saiu ilesa à própria indelicadeza e à alheia. A partir daquilo em continuas a acreditar na ternura, a te encantar e a se desprevenir, apesar de tantos apesares. Conta-me sobre as receitas que te fazem dão água na boca. Sobre o que gostas de fazer para te divertires. Conta-me se rezas antes de adormecer.

Hoje, fala-me de ti. Dos momentos em que a vida te doeu tanto, que achas-te que não irias aguentar. Fala-me das músicas que compõem a tua trilha sonora. Dos poemas que poderias ter escrito, de tanto que traduzem a tua alma. Senta-te perto de mim e mesmo que estejamos rodeados por buzinas, gente apressada, perigos iminentes, faz de conta que nós estamos a conversar no quintal de casa, descascando uma laranja, com os pés descalços, sem nenhum compromisso chato à nossa espera. Nós já brincamos tanto de faz-de-conta quando eramos crianças, onde foi que nos esquecemos como chegar a este lugar de inocência?

Fala- me da lua que admiras-te uma noite destas, no céu. Da borboleta que te chamou à atenção por tanta beleza, abraçada a alguma flor, como se existisse apenas aquele abraço. Diz-me se quando acordas ainda ouves passarinhos, mesmo que não possas identificar de onde vem o canto. Diz-me se a tua mãe cantava para adormeceres.

Senta-te perto e conta-me o que sentiste quando viste o mar pela primeira vez e o que sentes quando olhas pare ele, tantas vezes depois. Se tinha jardim na casa da tua infância, diz-me que flores riam por lá. Conta-me há quanto tempo não vês uma joaninha?

 Se tinhas algum apelido na escola. Se consegues imaginar-te bem velhinho. Fala-me da sua família, a de origem ou aquela que tens agora. Das pessoas que não têm o teu sobrenome, mas que são familiares para a tua alma.
Fala-me de quem passou pela tua vida e nem sabe o quanto foi importante para ti. Daqueles que o sabem e tu nem conseguiste dizer obrigado.
Fala-me daquele animal de estimação que deitava-se junto aos teus pés, solidário, quando estavas triste. Diz o que vai ser bom encontrar quando, bem lá na frente, olhares para o caminho que já percorreste na vida.

Podemos falar de abobrinhas, desde que sejam temperadas com riso, esse tempero que faz tanto bem. Podemos rir dos tombos que levas-te na rua e daqueles que levas-te na vida, dos quais, somente conseguimos rir muito tempo depois. Podes rir das tuas maluquices românticas. Das maiores encrencas em que  te metes-te um dia. Podes rir dos cárceres onde tu próprio te prendes-te, e o tempo imenso que levas-te para descobrir que as chaves sempre estiveram contigo.
Das mentiras que contas-te e que acreditaram com facilidade. Das verdades que disseste e que ninguém levou a sério.



Não precisas ter pauta, deixa seguir o  roteiro, deixa a conversa acontecer de improviso, uma lembrança puxando a outra pela mão, mas conta de ti e deixa que eu te conte de mim. Dessas coisas. De outras parecidas. Ouve também com os olhos. Escuta o que eu digo quando nem digo nada: a boca é o que menos fala no corpo. Não antecipes as minhas palavras. Não te impacientes com o meu tempo de dizer. Não me perguntes coisas que vão fazer a minha razão se arrumar toda para responder. Uma conversa sem vaidade, ninguém quer saber qual história é a mais feliz ou a mais desditosa.

 Hoje eu quero conversar com um amigo para falar também sobre as coisas boas da vida. As miudezas dela. A grandeza dela.

Um amigo para falar de coisas sensíveis. Do quanto o ser humano pode ser também bondoso, honesto, afetuoso, divertido e outras belezas. Dos lugares onde os nossos olhos já pousaram e daqueles onde pousam agora. Um amigo para conversar horas adentro, com leveza, de coisas muito simples, como nós já fizemos mais amiúde e parece termos desaprendido como se faz. Um amigo para se conversar com o coração.

E se não quisermos, não pudermos, não soubermos, com palavras, dizer um para o outro, senta-te ao meu lado, assim mesmo. Deixa que os nossos olhos se encontrarem outra vez, até nascer aquele sorriso bom que acontece quando a nossa vida, se sente olhada com amor. Senta-te apenas ao meu lado e deixa o meu silêncio conversar com o teu, assim neste momento de eterno Paz.

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