Hoje eu não quero conversas vestidas de uniforme.
Diálogos impecavelmente arrumados que não deixam o coração à mostra.
As
palavras podem sair de casa sem maquiagem. Podem surgir com os cabelos
desalinhados, livres de roupas que as apertem, como se tivessem acabado de
acordar. Dispensa-se tons acadêmicos, defesas de tese, regras para impressionar
o interlocutor. O único requinte deve ser o sentimento. É desnecessário tentar
entender qualquer coisa. Tentar solucionar qualquer problema. Buscar salvamento
para o quer que seja.
Hoje eu não quero falar sobre o quanto o mundo está
doente. Sobre como está difícil nós vivermos. Sobre os milhares de coisas que
causam o cancro. Sobre as previsões de catástrofes que vão dizimar a
humanidade. Sobre o quanto o ser humano pode ser também perverso, corrupto,
tirano e outras feiuras. Sobre os detalhes das ações violentas noticiadas nos
jornais. Não quero o blablablá encharcado de negatividade que grande parte das
vezes não faz outra coisa além de nos encher de mais medo. Não quero falar
sobre a hipocrisia que prevalece, sob vários disfarces, em tantos lugares.
Hoje, não. Hoje, não dá. Não me interessam o disse-que-disse, os julgamentos, a
investigação psicológica da vida alheia, os “achismos” sobre as motivações que
fazem as pessoas agirem assim ou assado, o dedo na ferida.
Hoje eu não quero aquelas conversas contraídas pelo
receio de não se ter assunto. A aflição de não se saber o que fazer se ele, de
repente, acabar. O esforço de se falar qualquer coisa para que a nossa quietude
não seja interpretada como indiferença. Hoje eu não quero aquelas conversas que
muitas vezes acontecem somente para preenchermos o tempo. Para tentarmos calar
a boca do silêncio. Para fugirmos da ameaça de entrar em contato com um monte
de coisas que o nosso coração tem pra dizer. Além do necessário, hoje não quero
falar só por falar nem ouvir só por ouvir. Que a fala e a escuta possam ser um
encontro. Um passeio que se faz juntos. Um tempo em que uma vida se mostra para
a outra, com total relaxamento, sem se preocupar se aquilo que é mostrado
agrada ou não. Se aumenta ou diminui os índices de audiência.
Hoje, se quiseres, se puderes, se souberes, fala-me de ti.
Da essência vestida com essa roupa de gente com a qual tu te apresentas. Fala-me
dos teus amores, tanto faz se estão perto do seu corpo ou somente do teu
coração. Fala-me sobre as coisas que costumas fazer para sintonizar a
frequência do teu riso mais gostoso. Fala-me sobre os sonhos que mantêm o
frescor, por mais antigos que sejam. Fala-me a partir daquilo em tu que não
desaprendes-te, o caminho das delícias. Do pedaço de doçura que não foi
maculado. Da porção amorosa que saiu ilesa à própria indelicadeza e à alheia. A
partir daquilo em continuas a acreditar na ternura, a te encantar e a se
desprevenir, apesar de tantos apesares. Conta-me sobre as receitas que te fazem dão
água na boca. Sobre o que gostas de fazer para te divertires. Conta-me se rezas
antes de adormecer.
Hoje, fala-me de ti. Dos momentos em que a vida te
doeu tanto, que achas-te que não irias aguentar. Fala-me das músicas que compõem
a tua trilha sonora. Dos poemas que poderias ter escrito, de tanto que traduzem
a tua alma. Senta-te perto de mim e mesmo que estejamos rodeados por buzinas,
gente apressada, perigos iminentes, faz de conta que nós estamos a conversar no
quintal de casa, descascando uma laranja, com os pés descalços, sem nenhum
compromisso chato à nossa espera. Nós já brincamos tanto de faz-de-conta quando
eramos crianças, onde foi que nos esquecemos como chegar a este lugar de
inocência?
Fala- me da lua que admiras-te uma noite destas, no
céu. Da borboleta que te chamou à atenção por tanta beleza, abraçada a alguma
flor, como se existisse apenas aquele abraço. Diz-me se quando acordas ainda
ouves passarinhos, mesmo que não possas identificar de onde vem o canto. Diz-me se
a tua mãe cantava para adormeceres.
Senta-te perto e conta-me o que sentiste quando viste
o mar pela primeira vez e o que sentes quando olhas pare ele, tantas vezes
depois. Se tinha jardim na casa da tua infância, diz-me que flores riam por lá.
Conta-me há quanto tempo não vês uma joaninha?
Se tinhas algum
apelido na escola. Se consegues imaginar-te bem velhinho. Fala-me da sua família,
a de origem ou aquela que tens agora. Das pessoas que não têm o teu sobrenome,
mas que são familiares para a tua alma.
Fala-me de quem passou pela tua vida e nem
sabe o quanto foi importante para ti. Daqueles que o sabem e tu nem conseguiste dizer obrigado.
Fala-me daquele animal de estimação que deitava-se
junto aos teus pés, solidário, quando estavas triste. Diz o que vai ser bom
encontrar quando, bem lá na frente, olhares para o caminho que já percorreste na vida.
Podemos falar de abobrinhas, desde que sejam temperadas
com riso, esse tempero que faz tanto bem. Podemos rir dos tombos que levas-te
na rua e daqueles que levas-te na vida, dos quais, somente conseguimos rir
muito tempo depois. Podes rir das tuas maluquices românticas. Das
maiores encrencas em que te metes-te um dia. Podes rir dos cárceres onde tu próprio te prendes-te,
e o tempo imenso que levas-te para descobrir que as chaves sempre estiveram
contigo.
Das mentiras que contas-te e que acreditaram com
facilidade. Das verdades que disseste e que ninguém levou a sério.
Não precisas ter pauta, deixa seguir o roteiro, deixa a
conversa acontecer de improviso, uma lembrança puxando a outra pela mão, mas
conta de ti e deixa que eu te conte de mim. Dessas coisas. De outras parecidas.
Ouve também com os olhos. Escuta o que eu digo quando nem digo nada: a boca é o
que menos fala no corpo. Não antecipes as minhas palavras. Não te impacientes
com o meu tempo de dizer. Não me perguntes coisas que vão fazer a minha razão
se arrumar toda para responder. Uma conversa sem vaidade, ninguém quer saber
qual história é a mais feliz ou a mais desditosa.
Hoje eu quero
conversar com um amigo para falar também sobre as coisas boas da vida. As
miudezas dela. A grandeza dela.
Um amigo para falar de coisas sensíveis. Do quanto o
ser humano pode ser também bondoso, honesto, afetuoso, divertido e outras
belezas. Dos lugares onde os nossos olhos já pousaram e daqueles onde pousam
agora. Um amigo para conversar horas adentro, com leveza, de coisas muito
simples, como nós já fizemos mais amiúde e parece termos desaprendido como se faz.
Um amigo para se conversar com o coração.
E se não quisermos, não pudermos, não soubermos, com
palavras, dizer um para o outro, senta-te ao meu lado, assim mesmo. Deixa que os
nossos olhos se encontrarem outra vez, até nascer aquele sorriso bom que acontece
quando a nossa vida, se sente olhada com amor. Senta-te apenas ao meu lado e
deixa o meu silêncio conversar com o teu, assim neste momento de eterno Paz.
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